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24 abr 2024

O Papo do Papa

por Reinaldo Polito

Hoje o Papa João Paulo II perdeu aquele porte atlético que possuía na época em que esquiava na Polônia. Não tem mais a agilidade física dos primeiros anos como Sumo Sacerdote, quando viajava com desenvoltura para todos os cantos do mundo, beijando o chão de toda terra aonde chegava. Sim, ele mudou muito. Arqueado pelos problemas de saúde, quase não consegue levantar a cabeça para olhar o povo que o acompanha e a voz sai com dificuldade. Mas, por onde passa, continua arrastando multidões cada vez maiores atrás de si. Sempre simpático, com aquela cara de vovô bonzinho, carismático e bom, muito bom de papo.
Cada discurso do Papa é uma verdadeira aula de comunicação, tanto pelo conteúdo da mensagem, quanto pela forma como ordena as informações e as adapta com propriedade às diferentes platéias e aos diversos locais onde se apresenta. O objetivo deste texto é analisar alguns dos discursos mais importantes proferidos pelo Papa quando esteve no Brasil e comentar as técnicas de comunicação que foram utilizadas na introdução de cada um deles e como será possível aplicá-las na comunicação do dia-a-dia.

A informação conhecida, apresentada com jeito de novidade, pode ser usada como técnica de introdução para criar impacto e conquistar a platéia

Aproveitando o beijo no chão para conquistar Brasília

À medida que uma atitude vai se repetindo, se por um lado funciona como espécie de marca registrada, com todo significado que possa simbolizar, por outro se esvazia pela ausência do ineditismo e da surpresa.
O hábito do Papa beijar o chão toda vez que desembarcava num país poderia ser identificado como um símbolo característico forte, mas que talvez se esvaziasse ao longo do tempo, por causa da repetição. Por isso, ao chegar em Brasília o Papa iniciou seu discurso mencionando o fato de ter repetido o gesto de beijar o chão por treze vezes, mas que em Brasília o fazia com a espontaneidade de algo que se faz pela primeira vez. Essas palavras tão oportunas do Papa reforçaram a importância do símbolo característico e, ao mesmo tempo, enfatizaram o sentimento de algo que se faz pela primeira vez, isto é, mesmo tendo repetido o mesmo gesto por tantas vezes, ali ele era inédito, pois se realizava como se fosse o primeiro:

“Não foi sem grande e profunda emoção que beijei há pouco o bom e generoso solo brasileiro, este gesto repetido treze vezes, já tantos são os países que tive a alegria de visitar como Papa. Acabo de realizá-lo com o calor e a espontaneidade de algo que se faz pela primeira vez, e, portanto, a comoção da primeira vez. Ele queria significar um primeiro e silencioso agradecimento à acolhida que me faz este País, a qual, por mil sinais mais ou menos perceptíveis, sinto carregada de fervor e afeição”.

Pronto, o beijo no chão estava justificado e Brasília conquistada pelo impacto da novidade. Agora, todos estavam prontos e interessados na sua mensagem. Fique atento. Se uma atitude, expressão ou circunstância se desgastou pela repetição ou pelo excesso de uso, ponha a criatividade e o espírito de observação para funcionar e encontre uma maneira de tornar a informação nova, atraente e mais estimulante.

O jogo de palavras como recurso para emocionar e envolver os ouvintes

Associando as características da região de Belo Horizonte e o nome da cidade com a platéia.
Talvez este tenha sido o início de discurso mais feliz e eficiente do Papa em todas as vezes que discursou no Brasil. Suas palavras possuem a musicalidade da poesia e tocam de forma certeira a emoção do público. Foi um momento comovente que envolveu a todos os ouvintes, especialmente os jovens presentes àquele encontro, ou que assistiam pela televisão.
O jogo de palavras bem feito, no momento oportuno, sem a vulgaridade do trocadilho, além de envolver emocionalmente os ouvintes, de maneira geral, é visto como indicador de inteligência. Lembro-me de que em um dos eventos do nosso Curso de Expressão Verbal, estavam presentes o empresário Guilherme Afif Domingos e o lutador de boxe Adilson Rodrigues, o Maguila. Ao iniciar seu discurso, Afif Domingos usou de maneira pertinente sua presença de espírito e se referiu ao lutador de boxe com a seguinte frase: “Nós, que hoje nos reunimos para refletir sobre a força da expressão, nos sentimos privilegiados por podermos prestar homenagem a este que é a expressão da força”.
Foi assim também que o Papa, com felicidade ímpar, jogou com as palavras ao iniciar seu discurso:

“Queridos jovens e meus amigos:
Agradeço a palavra de saudação do senhor Arcebispo de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Agradeço a todos os que aqui estão e que encontrei ao vir aqui, aos pastores e fiéis deste estado: a todos vós, muito obrigado. Peço que me seja permitido dedicar aos jovens do Brasil esta homilia. Pode-se olhar as montanhas, atrás, e se deve dizer: belo horizonte. Pode-se olhar a cidade, e se deve dizer: belo horizonte. Mas, sobretudo, pode se olhar a vocês e se deve dizer: que belo horizonte!”

Passados tantos anos desde que este discurso foi proferido, ainda hoje me emociono com a criatividade e a beleza da construção dessa mensagem. São palavras que merecem ser lidas e relidas muitas vezes.

A interdependência das partes do discurso como regra obrigatória

O sermão de uma montanha da Galiléia para o povo de Vidigal

São muitos os recursos de que podemos lançar mão para iniciar um discurso. São tão numerosos que é grande o risco de se eleger um deles apenas por opção estética e torná-lo inadequado para a mensagem. De que adiantaria, por exemplo, usar uma bela e atraente citação se ela se mostrasse divorciada do conteúdo da apresentação? Assim, ao nos decidirmos pela introdução, precisamos levar em conta a interdependência das partes e analisar se a informação do início terá ligação com o corpo e a conclusão.
A interdependência entre as partes do discurso sempre foi uma preocupação do Papa. Em todos os seus discursos o início tem por objetivo conquistar os ouvintes e também prepará-los convenientemente para a mensagem que irá transmitir.
Um exemplo perfeito da utilização dessa técnica pelo Papa foi o discurso que proferiu aos moradores da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Iniciou sua apresentação fazendo referência ao sermão da montanha no qual Jesus menciona oito vezes a expressão “bem-aventurados”, e destacou o fato de que na primeira vez Cristo afirmou ‘bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus “.

De nada valeria essa informação, na circunstância em que se apresentava, se ela não guardasse interdependência com o restante do discurso. Por isso, com habilidade e pertinência, o Papa fez sutilmente a passagem da introdução para o corpo da fala, ligando as palavras do sermão às características da sua platéia:

“Quando Jesus subiu ao monte e começou a proclamar às multidões que o circundavam o seu ensinamento que costumamos chamar de Sermão da Montanha, brotaram de seus lábios antes de tudo as bem-aventuranças. Oito bem-aventuranças, a primeira das quais declara: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus’.
Existe uma só montanha da Galiléia sobre a qual Jesus pronunciou as suas bem-aventuranças. Contudo, são tantos os lugares de toda a Terra onde estas mesmas afirmações são anunciadas e escutadas e são tantos os corações que não cessam de refletir sobre o significado daquelas palavras pronunciadas de uma vez por todas. E seu único desejo é, com todo o coração, pô-las em prática. Buscam viver a verdade das oito bem-aventuranças. Certamente existem em terras brasileiras muitos lugares assim. E também aqui existem muitíssimos desses corações.
Quando pensei de que maneira deveria apresentar-me diante dos habitantes desta terra que visito pela primeira vez, senti o dever de apresentar-me antes de tudo com o ensinamento das oito bem-aventuranças. E veio-me o desejo de falar destas coisas a vocês, moradores do Vidigal. Através de vocês gostaria de falar também a todos os que no Brasil vivem em condições parecidas com a de vocês. Bem-aventurados os pobres em espírito.
Entre vocês são muitos os pobres. E a igreja em terra brasileira quer ser a igreja dos pobres. Ela deseja que neste grande país se realize esta primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha “.

É como se o Papa estivesse conversando com cada um dos ouvintes, compreendendo sua situação e se mostrando seu aliado. Sabendo também que em outras partes do Brasil pessoas pobres e necessitadas o assistiam pela televisão e o ouviam pelo rádio, estendeu a todos a mesma mensagem.
Observe também que ele não partiu diretamente da referência do sermão para a platéia, pois esta atitude poderia demonstrar que as informações haviam sido arrumadas de maneira forçada para aquela circunstância. Fez antes uma espécie de pausa de ligação para tornar a passagem da introdução para o conteúdo da mensagem ainda mais sutil e natural. Logo após a citação das palavras de Cristo, ele menciona o fato de que elas são anunciadas e escutadas em ‘tantos outros lugares da Terra’, para em seguida dizer que ‘existem em terras brasileiras muitos lugares assim’. Assim, da pregação de Cristo na montanha da Galiléia para ‘tantas outras partes da Terra’ e em seguida para ‘terras brasileiras (onde existem) muitos lugares assim’, e finalmente para a população de Vidigal e a todos os brasileiros.
Quando desejar fazer uso de uma informação que possa ser ligada aos ouvintes, tenha sempre o cuidado de demonstrar que a associação ocorre naturalmente, construindo espécies de pontes até chegar ao ponto desejado. Esse procedimento evitará que as pessoas se sintam manipuladas e, principalmente, que não fiquem resistentes à mensagem.

O aproveitamento da circunstância de lugar para estabelecer identidade com a platéia

O ponto mais alto é o melhor para pronunciar o nome de Cristo.

O aproveitamento de uma circunstância de lugar é um ótimo recurso para estabelecer identidade com a platéia logo nas primeiras palavras do discurso. Demonstra que o orador e os ouvintes conhecem e se encontram pela mesma referência. O exemplo que vimos há pouco na apresentação do Papa em Minas Gerais se vale também desse recurso, mas se torna ainda mais evidente neste discurso proferido no Rio de Janeiro, do alto do Corcovado, próximo à imagem do Cristo Redentor. Também neste discurso o Papa demonstra sua competência em promover de maneira espontânea a passagem da introdução para o conteúdo da mensagem. O que impressiona ainda mais na construção desse discurso é a rapidez com que ele consegue cumprir os objetivos do início, que são principalmente o de conquistar os ouvintes, pois em poucas palavras já havia, conforme recomendação de Cícero para essa parte da apresentação, motivado o ânimo do ouvinte para receber bem o restante da fala:

“Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Cristo. De que outro lugar, no Brasil e fora dele, fazer ecoar este nome – o único que nos pode salvar e que tem um particular direito de cidadania na história do homem e da humanidade melhor que do alto deste imenso penhasco feito altar, entre as maravilhas naturais, criadas por ele, o Verbo de Deus, bem no coração do Rio de Janeiro. Aqui, a estátua que há precisamente 50 anos todo um povo quis erguer no cimo do pedestal natural que faz a um tempo símbolo, apelo e convite.
Redentor. Os braços abertos abraçam a cidade aos seus pés. Feita de luz e de cor e, ao mesmo tempo, de sombras e escuridão, a cidade é vida e alegria, mas é também uma teia de aflições e sofrimentos, de violência e desamor, de ódio, de mal e de pecado. Radiosa à luz do sol, silhueta luminosa suspensa no ar à noite, o Redentor, em pregação muda, mas eloqüente, aqui continua a problemar que ‘Deus é luz’, ‘é amor’. Um amor maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que a ‘caducidade do que foi criado’ mais forte do que a morte.
Sim, no cume destes montes, não há quem não possa contemplar a sua imagem, em atitude de acolher e abraçar, e imaginá-lo como é, sempre disposto ao encontro com o homem, desejo de que o homem venha ao seu encontro”.

Quando estiver no local onde deverá se apresentar, olhe atentamente ao seu redor e observe se será possível aproveitar as informações do próprio ambiente para incluí-las na sua mensagem. O prédio, o bairro ou a cidade onde se realiza o evento poderão servir para o aproveitamento de circunstância de lugar. É evidente que sabendo antecipadamente onde irá se apresentar, como nesse exemplo que acabamos de analisar, os comentários poderão ser preparados com antecedência.

O elogio às pessoas ou ao lugar onde vivem é um excelente recurso para conquistar os ouvintes, desde que seja feito com sinceridade

Um pouco de história da Bahia para dar respaldo aos elogios

Por mais bonito e eloqüente que seja um elogio, ele só conquistará a benevolência e a simpatia dos ouvintes se for respaldado com informações que comprovem sua veracidade. De nada adiantaria dizer aos ouvintes que eles são pessoas maravilhosas se esse elogio não for sustentado por informações que possam ser comprovadas. Por isso, ao chegar à Bahia o Papa revelou um pouco da história desse estado brasileiro para que seus elogios pudessem ser recebidos como verdadeiros.

“A tradicional hospitalidade baiana de que sou objeto nesta hora para o meu gáudio e felicidade não podia exprimir-se melhor do que nas palavras eloqüentes e sinceras do nosso arcebispo, o caríssimo Cardeal Avelar Brandão Vilela. Agradecendo-lhe e a toda a Bahia quero expressar-lhe o meu ‘muito obrigado’ pela acolhida que me reserva. Pisando este solo, tenho viva consciência de um encontro marcado com as nascentes puras do Brasil. No litoral baiano desembarcaram os descobridores. Não muito longe daqui, a voz, embargada de emoção, de Frei Henrique de Coimbra pronunciou, pela primeira vez na terra apenas descoberta, as palavras da consagração. Aqui foi criada a primeira Diocese brasileira. Esta cidade foi a primeira Capital da Pátria, quando esta nasceu para a Independência. Creio que dizer, sem desdouro para as outras regiões do País, que aqui tocamos com as mãos a brasilidade no que lhe é mais essencial. Por todos estes títulos quero, nesta oportunidade, saudar cordialmente o povo desta cidade e de todo o Estado.”

Como o Papa foi saudado pelo arcebispo, Cardeal Avelar Brandão Vilela, sua primeira atitude foi a de retribuir a gentileza, agradecendo as palavras do orador, ao mesmo tempo em que falava do seu contentamento pela acolhida que teve. Essa é uma boa regra a ser seguida quando somos homenageados. Falar da alegria, da emoção que sentimos com a homenagem e agradecer as palavras gentis e benevolentes do orador.

Um discurso pode estar muito além da platéia que o assiste

Uma mensagem de Roma para tocar os corações dos brasileiros

Depois de ter visitado o Brasil e falado para multidões, onde quer que se apresentasse, o Papa estava de volta à Itália e fazia seu primeiro discurso de regresso. Sem dúvida, o Brasil ainda estava envolvido na emoção que marcara seu encontro com o Papa. Com sua sensibilidade, o Sumo Sacerdote sabia que o país que acabara de visitar estava orgulhoso por ter proporcionado uma recepção tão magnífica, e esperava que o ilustre visitante mencionasse o fato na sua volta. Portanto, o discurso do Papa nesta circunstância era, além de uma satisfação aos italianos sobre a sua viagem, uma forma de agradecer aos brasileiros pelo carinho com que o receberam. Sabia também que essas eram palavras esperadas por aqueles de quem há pouco se despedira. Observe como o discurso feito para os italianos tinha a direção do Brasil:

“Obrigado, Senhor Ministro, pelas gentis expressões a mim dirigidas, em nome do Governo, no momento em que ponho o pé em solo italiano, no término de uma viagem repleta de encontros, de colóquios, de emoções inapagáveis. Não é só um sentimento de profundo reconhecimento para com Deus que o meu pensamento se volta para os dias intensos, transcorridos entre as populações daquela terra imensa e estupendamente variada, que é o Brasil. Trago ainda nos olhos os panoramas sem confins que se me ofereciam olhar admirado, durante os deslocamentos de uma localidade para outra. Mas tenho muito mais impresso no coração, o espetáculo comovedor das multidões entusiasmadas, no encontro com o humilde sucessor de Pedro, a fim de saudá-lo e testemunhar-lhe a sua fé”.

Com essa habilidade e inteligência na forma de transmitir a mensagem, disse o que precisaria ser dito àqueles que o recepcionaram, e também o que esperavam que dissesse os que com saudade ficaram no Brasil depois da sua visita.
Se você estiver em uma reunião de negócios ou fazendo um pronunciamento para um grupo, e a sua mensagem estiver sendo esperada por outras pessoas, fale com sua platéia, mas lembre-se de se expressar de maneira que suas palavras possam ir também ao encontro daqueles que, embora ausentes, estão ansiosos por elas. O Papa João Paulo II é inegavelmente um orador extraordinário, e nós podemos aproveitar seus exemplos para aprimorar nossa comunicação. Lembre-se também de que muitos outros grandes comunicadores estão a nossa volta e bastará ficarmos atentos para que possamos observá-los e continuar aprendendo sempre.

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