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24 abr 2024

Segredo dos livros

Reinaldo Polito

Tudo o que precisamos saber está nos livros 

É difícil encontrar uma pessoa que não seja fascinada por livros. Até quem não desenvolveu o hábito da leitura costuma dizer que gostaria muito de entrar em seu universo e conhecer seus mistérios.

A atração pelos livros nasce pelo prazer ou pela necessidade. Algumas pessoas por serem estimuladas a ler desde os primeiros anos de idade se apegam a eles para sempre. Outras, entretanto, que não tiveram essa sorte, descobrem com o passar do tempo que a leitura poderá lhes proporcionar uma vida diferente, muito mais plena de conhecimentos e de realizações.

Algum tempo atrás publiquei um texto contando como nasceu minha relação com os livros. Fiquei impressionado com a quantidade de leitores que me procuraram para relatar a sua própria história com os livros e para falar da emoção que sentiram ao relembrar de como iniciaram suas primeiras leituras.

Além dos leitores que me escreveram para falar de suas obras preferidas e dizer como o livro havia influenciado os rumos da sua vida, outros me procuraram para revelar como sentiam a vida limitada porque não conseguiram desenvolver o hábito da leitura.

Alguns me pediram que eu os ajudasse a encontrar alguns livros que os fizessem gostar de ler. A maioria disse que tinha consciência da importância da leitura, mas, que pela falta do hábito, nunca havia conseguido ler mais do que algumas páginas. Foi uma experiência emocionante sugerir obras que talvez estimulassem essas pessoas ao hábito da leitura.

Embora nesta minha coluna eu já tenha falado sobre livros, nunca tive a chance de escrever  a respeito de como nasceu essa minha paixão pela leitura.

Tudo começou com as primeiras professoras

Meus coleguinhas e eu torcíamos o nariz  e nos sentíamos pressionados porque as professoras não nos davam folga. Elas indicavam os livros que deveríamos ler, depois exigiam que preparássemos trabalhos escritos detalhando o que havíamos encontrado de mais importante nas obras, e, finalmente, nos convidavam para fazer diante da classe uma exposição oral dos capítulos sorteados ou indicados ao acaso.
O esquema quase militar adotado por elas não permitia que fugíssemos da tarefa que nos era atribuída. Se não nos dedicássemos à leitura dos livros e não cumpríssemos o que nos era determinado, teríamos que arcar com as conseqüências, pois ninguém queria passar pelo constrangimento de levar para casa um boletim com notas vermelhas para os pais assinarem.

Entretanto, hoje estou consciente de que foi por causa dessa atitude severa das professoras que com o passar do tempo comecei a me interessar pelos livros e a gostar de ler. Sem que eu me desse conta, a leitura se transformou num hábito natural que me deu sempre enorme prazer. Percebi pela minha experiência e a de muitos dos meus coleguinhas que o hábito que desenvolvemos nos primeiros anos de vida jamais desaparece.

Os adultos e a leitura

Mesmo sendo natural que o gosto pelos livros seja cultivado logo nos primeiros anos de vida, excepcionalmente, o hábito pela leitura também poderá se desenvolver em pessoas adultas. Só que depois de uma certa idade, para que o indivíduo passe a sentir prazer na leitura, essa atividade exigirá dele muito mais esforço e uma disciplina bastante intensa.

Alguns casos que presenciei pareceram milagres. O mais marcante de todos ocorreu com um vizinho da minha casa na rua Carajás, lá em Araraquara, no interior de São Paulo. Ele se chamava “seu” Vitor e protagonizou a proeza de aprender a ler com quase 80 anos. A história foi bastante curiosa porque em sua casa não havia um único livro sequer, mas assim que passou a freqüentar a igreja Mórmon ficou encantado com a Bíblia, e, sozinho, sem ajuda de ninguém, aprendeu a ler. A Bíblia passou a ser sua companheira de todas as horas. Todos os dias Seu Vitor se dedicava àquela leitura que lhe dava tanto prazer. Até hoje me lembro de vê-lo concentrado  em suas páginas sussurrando as palavras para ele mesmo.

Ao longo dos anos em que tenho desenvolvido a atividade de professor, tive o privilégio de estimular muitas pessoas adultas a se dedicar à leitura. Com o tempo aprendi que para tornar essa tarefa bem-sucedida, um dos requisitos mais importantes é acertar na indicação do autor. Para aumentar as chances de que o adulto passe a gostar de ler é preciso que ele tenha em mãos uma obra escrita por uma pessoa instigante, que consiga transportá-lo para um mundo de sonhos, aventuras e paixões.

O ensino da arte de falar em público mostra um fato curioso. A maioria dos alunos do nosso curso de Expressão Verbal passa a se interessar mais por leituras quando percebe que aprender a falar bem terá pouca utilidade se não houver conteúdo. À medida que se sentem mais à vontade diante da platéia, verificam que poderão e precisarão enriquecer a mensagem com a leitura dos livros.

Meus primeiros contatos com os livros.
Os livros começaram a participar da minha vida há muitos anos. Já falei de como as professoras foram importantes para que eu me interessasse pela leitura. Além delas, logo nos primeiros anos, antes mesmo de ser alfabetizado, minha prima Vanderli Portioli também exerceu grande influência no meu contato com os livros. Ela morava em Mirassol, cidade que também fica no interior de São Paulo, e de vez em quando passava uns dias na minha casa em Araraquara. Durante suas visitas, de maneira bastante paciente, ela lia em voz alta para mim alguns livros de histórias infantis. Não tenho dúvidas de que foi graças às lições das professoras e à presença da minha prima Vanderli, que nasceu minha paixão pelos livros.

Entretanto, para que meu hábito de leitura pudesse ser cultivado tive de fazer verdadeiros malabarismos. Fui um menino de poucos recursos financeiros, assim como a maioria das crianças que moravam no mesmo bairro que eu. Para ser sincero, não estou sendo exato quando falo em poucos recursos financeiros, pois na verdade o dinheiro nunca estava no meu bolso.

Ora, comprar livros vivendo numa dureza daquelas era praticamente impossível. Por isso, para conseguir uns caraminguás, só havia um caminho, recorrer ao meu amigo Tunão, que morava na rua Tupi, em uma casa com uma boa horta no quintal. Ele separava uns legumes, como chuchu e abobrinha para eu vender de porta em porta e assim levantar uns trocados. Embora o total arrecadado fosse sempre muito pouco, toda grana que eu ganhava era destinada para comprar livros em uma das poucas livrarias de Araraquara, que se limitavam à Casa Rodella, Bizelli, Brasil e à livraria da Marina, perto dos Correios.

Nessa época, como eu tinha apenas cerca de 12 ou 13 anos, meus livros preferidos eram bastante modestos. As obras de que eu mais gostava eram as edições condensadas dos grandes autores, publicadas pela Melhoramentos.

Eu ficava emocionado com a aquisição de cada livro. Assim que saía da livraria, ainda na rua já começava a ler. Ficava ansioso para chegar em casa, sentar na soleira da porta da cozinha e devorar cada uma das páginas até a última linha. Como a compra de cada livro exigia muito esforço, eu cuidava das obras com carinho especial. Dessa forma, devagar, fui montando minha biblioteca particular. Todos esses livros estão comigo até hoje. De vez em quando gosto de folhear e reler esses que considero meus velhos e queridos companheiros, os responsáveis por quase tudo o que aprendi na vida. 

A biblioteca pública
A biblioteca pública entrou na minha vida. Como a minha vontade de ler era inversamente proporcional ao dinheiro que eu possuía para comprar os livros, encontrei uma boa solução para o problema, tornei-me freqüentador assíduo da biblioteca. Estou me referindo à antiga biblioteca municipal de Araraquara, quando ainda estava instalada na rua Quatro (Araraquara sempre teve esse jeito nova-iorquino de denominar as ruas e avenidas por números).
Meus contatos com a biblioteca foram mais ou menos conturbados. Ocorre que eu não me satisfazia apenas em ler os livros, gostava de ficar com eles um pouco mais para reler alguns capítulos que mais me atraiam e analisar como o autor havia costurado sua narrativa. Embora eu não ficasse com os livros por tempo tão prolongado, sempre expirava o prazo para devolução da obra. 

Mais uma vez tive a sorte de encontrar uma pessoa que marcou muito a minha vida com os livros, o velho e simpático Bonavina. Depois de ficar alguns dias com os livros emprestados, se eu não os devolvesse dentro do prazo estipulado pela biblioteca, podia ter certeza de que receberia a visita do Bonavina, que chegava com sua inseparável bicicleta, para levar as obras de volta. 

Perdi a conta de quantas vezes o Bonavina teve de ir à minha casa para buscar livros. Ele encostava a bicicleta no muro e abria um largo sorriso, às vezes sem dizer uma única palavra. Era simpático, amável e muito compreensivo. Nunca me censurou, nunca me repreendeu e nunca cobrou um tostão de multa pelos atrasos.  Sinto que ele entendia bem que aquela minha falta era só por causa do meu amor pelos livros, e como sabia que as pessoas não seriam prejudicadas em virtude daqueles pequenos atrasos, relevava os deslizes de uma criança que só estava interessada em ler. .

Bonavina se aposentou depois de quase uma vida inteira dedicada em zelar pelos livros da Biblioteca Municipal Mario de Andrade de Araraquara. Somente depois de mais de 30 anos é que eu o reencontrei saboreando uma cervejinha e jogando conversa fora com alguns amigos num bar do Jardim Primavera, nas imediações da casa onde sempre morou.

Esse reencontro me emocionou muito. Aproveitei para pôr a conversa em dia e saber do seu filho, Zé Bonavina e da sua esposa, dona Ana. Ele também perguntou da minha família, quis saber da minha mãe, Lúcia, e do meu irmão, que sempre tratou carinhosamente por Alemão. Como não poderia deixar de ser, recordamos da época em que ele fazia o resgate dos livros e observei mais uma vez o mesmo sorriso que ele descortinava quando pegava as obras de volta.

Sei que nunca prejudiquei ninguém por ter ficado um pouco mais com os livros que emprestava da biblioteca, mas essa história de não ter sido pontual na devolução das obras me fazia sentir em débito. Há pouco tempo retornei à biblioteca, já no novo endereço. Bisbilhotei as prateleiras, todas bem organizadas, folheei umas obras, e fiquei muito surpreso ao constatar que eles possuíam alguns livros de minha autoria com as fichas indicando diversas retiradas.

Encontrei assim uma maneira de pelo menos em parte quitar minha antiga dívida com a biblioteca. Como os meus livros eram bem procurados, eu poderia fazer uma doação de alguns títulos. Em uma semana que eu estava de folga fui até lá com dez dos últimos livros que publiquei.

Fui muito bem recebido pela Fátima Aparecida Zampiero Ramos, que trabalha lá há cerca de 20 anos. Entre os diversos assuntos da nossa agradável conversa falei também sobre as minhas aventuras com o Bonavina.

Fiquei triste ao saber que ele havia falecido. Foi uma grande perda. Como eu queria contar ao meu “cúmplice” que, de um jeito diferente, estava tentando quitar a minha dívida ao doar aqueles livros para a biblioteca.

Mas, é possível também que ele, lá do outro lado, esteja me olhando com aquele sorriso simpático e dizendo baixinho com sua voz rouca, só para eu ouvir – ninguém poderia prever que um dia você sozinho traria livros para a biblioteca, sem que eu precisasse correr atrás com a minha bicicleta!

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