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04 mar 2018

Um livro e um amigo de quase cem anos

Só de pensar nos fatos que vou relatar fico emocionado. Talvez tenha sido um dos momentos mais marcantes da minha vida.

Essa história real tem como protagonistas um livro antigo e um amigo de quase cem anos de idade.

Vou começar pelo princípio. No início dos anos 1980 convidei o Deputado Fernando Mauro Pires Rocha para ser o paraninfo de uma das turmas do nosso Curso de Expressão Verbal.

Durante a solenidade de formatura ele me deu de presente um livro que lhe havia servido como fonte de consulta para o discurso que fez aos formandos. Era uma primeira edição de A arte de falar em público, publicada pelo professor Silveira Bueno em 1933.

Embora tivesse mais de 50 anos o livro estava com a capa original e muito bem conservado. À medida que lia cada um de seus capítulos fui me apaixonando pela obra. Os conceitos do autor eram muito semelhantes a tudo o que eu considerava importante sobre a arte de falar.

Sempre que tinha oportunidade pegava o livro que estava à minha cabeceira, folheava sem pressa cada uma de suas páginas e ficava matutando como teria sido a vida do professor Silveira Bueno.

Por uma dessas boas coincidências, ao conversar por telefone com meu amigo Fernandes Soares, que também era professor de oratória, falei sobre essa minha curiosidade.

Ele me disse: – Polito, é muito fácil matar essa sua curiosidade, o professor Silveira Bueno está bem velhinho, mas ainda está vivo.

Aquela informação me deixou sem fôlego: – Ele está vivo? Velhinho como? Quantos anos ele tem? Onde ele mora? Você tem contato com ele?

Soares se divertiu bastante com a minha ansiedade e me contou o que sabia : – O professor Silveira Bueno está vivo, goza de ótima saúde e já ultrapassou a faixa dos 90 anos. Mora mais ou menos perto de você, ali na Vila Mariana.

Vou passar o telefone dele, mas preciso lhe dar um aviso importante Polito, o professor se tornou uma pessoa muito reservada, até um pouco ranzinza e não é lá muito dado a receber visitas.

Embora as palavras do Fernandes tenham me deixado um pouco preocupado, como eu tinha muita vontade de conhecê-lo não hesitei nenhum instante para tomar a iniciativa de procurá-lo.

Quem atendeu meu telefonema e passou a ligação para ele foi seu sobrinho Geraldo.

Ele me atendeu com a voz de uma pessoa idosa, mas que também demonstrava muita firmeza e segurança:

– Pois não, aqui é o professor Silveira Bueno, quem deseja falar comigo?

Meu discurso já estava pronto. Procurei agir com naturalidade e contei toda a história em poucos segundos: – O senhor não me conhece, meu nome é Reinaldo Polito, sou leitor e admirador do seu livro, quem me deu o número do seu telefone foi o professor Fernandes Soares e tenho muita vontade de conhecê-lo.

Sua resposta foi surpreendente: – Terei muito prazer em recebê-lo na hora que o senhor desejar.

Diante daquela amabilidade inesperada não vacilei. Disse que se ele não se incomodasse gostaria de visitá-lo ainda naquela mesma tarde.

Ele me recebeu com um largo sorriso, como se nos conhecêssemos há muitos anos. Abriu a porta, me convidou para entrar, conhecer sua biblioteca e  me deixou à vontade para retirar das estantes os livros que desejasse.

Ao consultar algumas obras, comentei o fato interessante de todas terem anotações. Sua resposta veio com uma voz bem marota: é verdade, professor Polito, eu costumo ler meus livros.

Foi uma tarde inesquecível. Os assuntos da nossa conversa foram os mais variados. Falamos de livros, aulas, imprensa, formas de proteger a biblioteca das traças, oratória do passado e do presente, família, enfim, todos os temas que aguçaram minha curiosidade nas inúmeras vezes em que folheei seu livro.

Sua história era fascinante. Havia sido catedrático de filologia na Universidade de São Paulo, educado na Europa, sempre foi muito religioso e se manteve solteiro.

Entre suas maiores façanhas está o fato de que foi professor de português do Papa Pio XII. Sua experiência como professor de oratória se limitou apenas a duas turmas de alunos.

Fiquei impressionado quando ele me mostrou as revisões que estava fazendo em seus livros. Nunca presenciei vitalidade semelhante, reescrever e revisar livros aos 93 anos. Segundo ele me disse, fazia aquele trabalho por paixão pelos livros que escreveu e para deixar um bom legado para as futuras gerações.

Ao nos despedirmos ele perguntou se eu poderia voltar no dia seguinte. Voltei no dia seguinte e nunca mais parei de freqüentar sua casa. Convivi com o professor Silveira Bueno até o fim de sua longa e produtiva vida.

Neste momento, enquanto falo dele com saudade e emoção, estou folheando aquele mesmo livro que nos aproximou. O livro está intacto, bonito, autografado com sua letra trêmula, mas com evidente personalidade – “Ao batalhador da oratória, senhor Reinaldo Polito, a minha admiração. Professor Silveira Bueno. 12.12.1987.”

A emocionante palestra

No final de 1987 eu o convidei para participar da solenidade de formatura do nosso curso de expressão verbal e fazer uma palestra. Convidei sem acreditar em uma resposta afirmativa, pois com 93 anos julguei que ele fosse recusar. Surpresa – aceitou sem relutar.

O auditório do Buffet Colonial, em São Paulo, estava totalmente lotado. Foi difícil conter a emoção quando o professor caminhou sorridente pelo corredor e foi longamente aplaudido de pé por todos os ouvintes.

Sua palestra foi uma magistral aula de comunicação. Espirituoso, bem-humorado, eloquente, lúcido, expressivo, arrancou gargalhadas da plateia o tempo todo.

A primeira lição do mestre foi dada a partir de um sutil e inteligente artifício. Ele iniciou pedindo desculpas por falar sentado, pois alegou que não se apresentava em pé porque estava muito velho.

Lógico que esse pedido de desculpas foi o meio que encontrou para explicar que se puder o orador sempre deve falar em pé para ter condições de se impor diante da plateia, ter maior domínio e poder sobre os ouvintes.

Durante os trinta e quatro minutos da sua palestra ensinou como falar em público criticando a comunicação de Rui Barbosa, que ele havia assistido em três oportunidades.

Silveira Bueno saiu do ostracismo

O jornalista Heródoto Barbeiro, que é professor de história, foi o paraninfo daquela turma e ficou entusiasmado com o discurso do professor Silveira Bueno. Disse que aquela tinha sido uma grande aula de história, pois nunca ouvira dizer que Rui Barbosa, o grande Águia de Haia, tivesse sido péssimo orador.

Na semana seguinte, Silveira Bueno, que há tantos anos vivia recluso entre seus livros, virou notícia. Heródoto Barbeiro fez um programa inteiro na emissora de rádio comentando trechos da sua fala.

Nessa mesma época, uma das alunas do nosso curso que era jornalista do Estadão fez uma matéria extensa com o professor Silveira Bueno, com uma enorme foto dele na capa do caderno 2, contando sua vida.

Eram os últimos tributos prestados ao grande mestre, porque pouco tempo depois viria a falecer aos 94 anos. As emissoras de televisão que noticiaram sua morte utilizaram imagens gravadas na palestra que fez na nossa formatura.

Fui à missa de sétimo dia na Igreja da Consolação, que, atendendo à sua vontade, foi rezada com cantos gregorianos. Somente ali pude conhecer alguns de seus antigos amigos, a maioria constituída de professores universitários aposentados e de ex-alunos.

Só saudade

Quando produzi o CD que acompanha meu livro Como falar corretamente e sem inibições, fiz questão de incluir o trecho do discurso em que o professor Silveira Bueno fala de Rui Barbosa. Pedi autorização para o Geraldo, seu sobrinho, aquele que atendeu o meu primeiro telefonema. Ele consentiu sem nem mesmo ter ouvido a gravação.

Quando o livro ficou pronto mandei entregar um exemplar em sua casa. Pouco tempo depois ele me ligou em prantos, dizendo que foi o melhor presente que já havia recebido.

Estava chorando de felicidade e me disse que era exatamente assim que gostaria que as pessoas conhecessem seu tio, alegre, bem-humorado, espirituoso. E por ser muito religioso, disse que o querido mestre estava lá no alto contente sabendo que a sua voz seria ouvida por milhares e milhares de pessoas.

Como até hoje procuro explicações para o sucesso do meu livro depois que saiu com a edição acompanhada do CD, permanecendo três anos nas listas dos mais vendidos, quem sabe não tenha sido a mão do velho professor.  Afinal ele tinha um papa como ex-aluno que poderia intermediar seus pedidos.

Foi a última vez que falei com o Geraldo. Há alguns meses sua esposa, Lais, me telefonou avisando que ele havia falecido e que sempre falava da amizade bonita que eu mantivera com seu tio nos últimos anos de sua vida.

Tenho todos os livros do professor Silveira Bueno, que pacientemente os autografou para mim. Alguns de seus dicionários continuam fazendo muito sucesso com sucessivas reedições.

De todos eles, entretanto, tenho um carinho e um apego especial à primeira edição de A arte de falar em público, livro que me proporcionou a oportunidade de conviver com uma das personalidades mais marcantes que já tive a felicidade de conhecer.

Neste momento, enquanto escrevo este texto, durante as pausas, fico admirando o livro que está aqui na minha frente e penso mais uma vez no professor Silveira Bueno, só que de uma maneira diferente daquela em que o li pelas primeiras vezes.

Agora já sei quem ele foi, o que representou, com quem vivia, como cuidava de seus livros e quem eram seus amigos, e me sinto realizado por saber que fiz parte da sua vida, assim como ele fará parte da minha vida para sempre.

Vou encerrar meu texto desta semana usando como superdicas informações que retirei do livro do meu saudoso e querido amigo professor Silveira Bueno.

Superdicas da semana:

– Sobre os gestos – as mãos não andem a catavento, como pás de moinho doido, em luta com sombras e fantasmas.

Sobre a voz – não deve ser trêmula ou flauteada, entrecortada de soluços ou enriquecida de clarineios.

Sobre a aparência – quem sabe apresentar-se, quem sabe ter uma aparência agradável já conseguiu cercar-se da atenção simpatizante da assistência.

 

Livro de minha autoria que trata desse tema: “Como falar corretamente e sem inibições”, publicado pela Editora Saraiva.

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