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25 abr 2024

Você fala com sotaque

por Reinaldo Polito

Estamos tão acostumados a observar pessoas de outras regiões falando de uma maneira própria delas, que às vezes nos esquecemos de um detalhe curioso – todos nós falamos com sotaque, dependendo do lugar onde estivermos. Assim, para o paulista quem tem sotaque é o nordestino ou o gaúcho, enquanto que para o nordestino ou para o gaúcho quem tem sotaque é o paulista. Por exemplo, quando vou fazer palestras na região nordeste e me convidam para dar entrevistas nas emissoras de rádio ou de televisão, é muito comum me perguntarem: “Professor, e o seu sutaque? Como o senhor trabalha seu problema de sutaque?” Sim, porque ali, naquela região, quem tem sotaque sou eu.

No relacionamento intercultural esse fenômeno é denominado etnocentrismo, isto é, o fato de julgarmos que todas as sociedades e culturas se baseiam nos valores, costumes e normas da nossa própria sociedade. De maneira geral, nós nos surpreendemos com essas observações porque, segundo Edward T. Hall, não temos consciência da nossa própria cultura em nós mesmos. Comportamo-nos a partir dos costumes e hábitos da região onde fomos criados e nos vemos apenas com nossos próprios olhos, sem noção de como outras pessoas, formadas em outras culturas e lugares, e acostumadas a eles, poderiam nos ver e nos qualificar.

E a dúvida que surge é esta: será que conviria mudar nosso jeito de falar porque ele é diferente das pessoas com as quais passamos a conviver?

Essa é uma pergunta que não permite apenas uma resposta de sim ou não, pois precisamos considerar uma série de fatores antes de tomarmos a decisão, que poderá significar a ruptura com um comportamento enraizado pelo hábito de uma vida inteira.

Minha experiência pessoal
Nasci e fui criado em Araraquara, uma cidade do Interior que fica bem no centro do Estado de São Paulo. Araraquara possui uma característica muito interessante: uma parte da população tem sotaque interiorano bastante carregado, enquanto que outra não tem sotaque nenhum. Adivinhe em que lado da população eu fui criado? Evidentemente entre aqueles que falam com sotaque bem acentuado. Quando me mudei para a capital, com 21 anos de idade, de vez em quando observava algumas pessoas cochichando e sorrindo, provavelmente por causa da minha maneira de falar. Pensava no assunto, mas não me incomodava, pois os grupos me aceitavam bem e eu fazia amizades com facilidade. Entretanto, aos 24 anos, quando resolvi me tornar professor de expressão verbal, percebi que o sucesso da nova carreira poderia estar associado à minha maneira de falar.

Imagine eu ministrando cursos e palestras em todos os cantos do País e orientando os alunos com aquele erre arrastado do interior paulista: “Laéérrrcio, você está toorrrto”. Lógico que perderia muito da minha força como professor dessa matéria. Por isso, fiz um treinamento autodidata intenso, durante muitos anos, para eliminar qualquer vestígio do sotaque interiorano. Mesmo assim, quando estou bem à vontade, despoliciado, tratando de assuntos amenos, principalmente entre os familiares, vez ou outra acaba escapando um piirrr ipipiirrr.

No meu caso, portanto, mudei minha maneira de falar por causa de uma necessidade profissional, para poder sobreviver em uma atividade que exigia comunicação isenta daquela marca tão característica da minha região natal.

Mas nem sempre é assim. Há alguns anos recebi um aluno que havia tomado posse como ministro. Ele, assim como eu, tinha sido criado em uma cidade do interior do Estado de São Paulo e por isso falava com sotaque forte, até bem mais acentuado do que aquele que eu levara na bagagem quando saí de Araraquara. Bem, com essa minha “autoridade para corrigir sotaque”, depois do trabalho que havia feito comigo mesmo, em pouco tempo propus um treinamento que eliminou cerca de 80% da sua pronúncia interiorana. A partir daí meu conselho foi para que continuasse com os 20% remanescentes, por dois motivos. Primeiro, porque a pasta que ele havia assumido estava naturalmente ligada aos assuntos do Interior e seu leve sotaque poderia funcionar como ponto de identificação com os ouvintes. Segundo, por causa da credibilidade que conservaria se continuasse falando daquela maneira. Essa questão da credibilidade originada do sotaque interiorano merece uma análise mais cuidadosa.

Sotaque interiorano e credibilidade
Há ainda uma noção, desvirtuada da realidade, evidentemente, de que as pessoas que vivem no Interior são sempre simples e muito honestas. Sabemos que a verdade às vezes é um pouco diferente, pois, mesmo existindo bastante gente simples e honesta no Interior, há também muita picaretagem. Não é raro, por exemplo, ouvir pelos meios de comunicação que uma grande quadrilha de ladrões de carros ou de traficantes de drogas foi presa no Interior com a boca na botija. Mas, por um desses fenômenos inexplicáveis, as pessoas logo se esquecem dessas informações e mantêm a opinião original sobre a pureza interiorana. Certo ou errado, verdadeiro ou falso, de forma geral, as pessoas pensam assim, e esse fato precisa ser levado em consideração. Por isso, quem fala com sotaque interiorano pode conquistar maior credibilidade na comunicação.

É uma questão de lógica básica: se tem sotaque interiorano, deduz-se que a pessoa nasceu no Interior; ora, quem nasce lá tem credibilidade; logo, quem fala com sotaque interiorano tem credibilidade.

Essa reflexão sobre a possibilidade de se ter mais credibilidade pelo fato de se falar com sotaque interiorano é um bom exemplo para mostrar que nem sempre é conveniente mudar a maneira de falar, apenas pelo fato de ela ser diferente da forma como as outras pessoas com as quais passamos a conviver se expressam.

José Dirceu, o todo-poderoso homem forte do governo Lula, ao longo de sua carreira política usou seu pesado sotaque do interior paranaense como espécie de marca registrada na sua comunicação. Não há duvida de que ele poderia ter mudado sua maneira de falar há muito tempo e, se não eliminado, pelo menos atenuado sensivelmente o sotaque. Mas, quanto mais se aproximava a época das eleições, a impressão que tínhamos é que mais forte e acentuado passava a ser seu sotaque. Não é difícil concluir que essa maneira de falar o caracterizava como um homem simples, honesto, verdadeiro, atribuindo-lhe mais credibilidade e, portanto, fazendo-o merecedor dos votos dos eleitores. Não estou dizendo que sua votação expressiva ocorria apenas por causa de seu sotaque, mas que ajudava, ajudava.

Outro excelente exemplo é o do dr. Waldir Troncoso Peres, um dos maiores e mais competentes oradores da história do direito do Brasil. Sua comunicação, caracterizada por uma eloqüência sem concorrência, atua como espécie de vendaval que varre os adversários em todos os tribunais onde se apresenta. Também esse orador excepcional poderia, se desejasse, ter eliminado seu leve sotaque caipira de Casa Branca, sua cidade natal, instalada nas fraldas da Mantiqueira. Entretanto, quantos julgamentos ele deve ter vencido porque os jurados acreditaram nas palavras do homem bom, simples e honesto do Interior. Não seremos ingênuos de pensar que sua carreira vitoriosa foi construída apenas em cima do seu sotaque, mas que também nesse caso ajudou, ajudou.

O risco de comprometer a naturalidade
Antes de se decidir sobre a conveniência de eliminar ou não o sotaque atente para a questão da naturalidade. Dependendo da maneira como você venha a fazer o trabalho para mudar a forma de falar poderá comprometer a naturalidade da sua comunicação e desenvolver um artificialismo que, por ser evidente, poderá até prejudicar sua credibilidade.

A mudança brusca, precipitada quase sempre é muito negativa. Você acaba cortando suas raízes, se despersonalizando e não obtendo nenhum tipo de benefício. Você deixa de falar como os habitantes de sua região, mas demonstra ostensivamente, de maneira artificial, que está tentando se expressar de forma diferente. As pessoas percebem a tentativa de mudança e podem levantar resistências à sua mensagem.

Já presenciei casos muito curiosos. O mais marcante foi quando recebi um rapaz que de um momento para outro passara a falar com voz afeminada e bastante esquisita. Depois de uma análise cuidadosa pude constatar que essa sua nova forma de falar ocorrera porque, tendo se mudado do Nordeste para o Sul, de vez em quando era ridicularizado pelos novos colegas de escola, que estranhavam o sotaque nordestino. Sabendo que deveria conviver muito tempo com aquelas pessoas, o rapaz tomou a decisão de mudar e eliminar o sotaque. A mudança brusca e precipitada fez com que deixasse de se expressar de maneira natural e desenvolvesse aquele jeito estranho de falar. Depois de estar consciente de como deveria agir, adotou dali para frente outra atitude e foi suprimindo gradativamente o sotaque, de forma espontânea, passando assim a se comunicar com eficiência.

Quando o sotaque deve ser eliminado
Embora a decisão final deva ser sua, alguns fatores precisam ser considerados para que você saiba se deverá ou não eliminar o sotaque: a compreensão da pronúncia, o efeito na avaliação e a possibilidade de resistência do ouvinte.

A compreensão da pronúncia
O sotaque de algumas regiões é tão carregado que temos a impressão de que a pessoa está se comunicando em outra língua. É evidente que esse tipo de pronúncia prejudica a compreensão dos ouvintes e compromete a qualidade da comunicação. Nesse caso não há muito que pensar, pois obrigatoriamente a maneira de falar deverá ser modificada. Observe, entretanto, se não se trata de um problema de dicção defeituosa, porque embora também possa prejudicar a compreensão dos ouvintes, a solução é muito distinta e requer o auxílio de um fonoaudiólogo.

O efeito da avaliação dos ouvintes
Pelos motivos já analisados, os ouvintes poderão estranhar a maneira como uma pessoa de outra região fala e por isso passar a ridicularizar sua forma de se expressar. Essa reação negativa do ouvinte, zombando do sotaque, será um ruído na comunicação que precisa ser eliminado. Se você enfrentar esse tipo de situação pense seriamente em acabar com o sotaque e mudar seu jeito de falar.

A possibilidade de resistência dos ouvintes
Pode ocorrer de os ouvintes entenderem que determinada maneira de falar seja prepotente ou arrogante e, por isso, ficarem resistentes com relação à mensagem. É um comportamento emocional sem nenhuma relação com as informações. Regiões muito badaladas pela moda, ou que foram privilegiadas por favores que beneficiaram seus habitantes, ao contrário de outras que dificilmente são mencionadas no burburinho social, ou tiveram de fazer esforços e sacrifícios e mesmo assim não atingiram o mesmo resultado, podem conquistar a hostilidade e a resistência com relação às suas atitudes, inclusive quanto à sua forma de falar. Se você pertencer a uma região que seja vista com essa imagem negativa, tome cuidado com sua maneira de se comunicar, pois poderá encontrar objeções, independentemente do que tenha a dizer.

Com base nesses fatores você deverá tomar a decisão de eliminar ou não seu sotaque. Lembre-se também de que, se precisar manter contato com pessoas de outras regiões por tempo prolongado, mesmo que, apesar da sua maneira de falar, compreendam bem o que você diz, não o ridicularizem e não o vejam como prepotente ou arrogante, valeria a pena procurar gradativamente eliminar ou pelo menos reduzir seu sotaque. Afinal, se você falar como as outras pessoas falam, é quase certo que suas chances de conviver bem com elas serão muito melhores.

Entretanto
Sim, entretanto, se você gostar muito do seu jeito de falar e considerar o sotaque um importante ponto de identificação com os habitantes e as coisas de sua região, independentemente de qualquer outra consideração, continue com seu regionalismo e seja feliz com ele.

Tenho um querido amigo português, Carlos Jacques Saks, que viveu quase dez anos trabalhando em diversas regiões do Brasil. Dirigiu grupos de agências do Banco Francês e Brasileiro em cidades como Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e São Bernardo do Campo, que possuem sotaques bastante distintos e característicos. A curiosidade é que nessa época seu filho José, que era apenas um garotinho, vivia em contato com os brasileiros em todos esses locais, e, portanto, sujeito a assimilar as diferentes falas regionais. Ocorre que meu amigo Saks, apaixonado por seu país de origem, sabia que dia mais cedo, dia mais tarde voltaria com a família para Portugal e, por isso, ele e a esposa Lourdes baixaram uma norma para o Zé – falar sempre em bom português de Portugal. Dessa maneira, estavam procurando preservar o filho para que ele pudesse voltar a Portugal falando sem o sotaque brasileiro.

Recentemente, visitei a família desse meu amigo em Lisboa e tive a oportunidade de conversar com o Zé, que agora já não é mais um garotinho, e verifiquei que ele se comunica sem nenhum sotaque brasileiro. Essa atitude do meu amigo Saks, que na época eu não consegui compreender bem, agora estava perfeitamente explicada.

Como agir no contato com pessoas de outros países
Já que estou citando a experiência de como meu amigo português preservou a forma de falar de seu filho, vale a pena discutir um pouco sobre a maneira de tratar nosso sotaque quando estamos em contato com pessoas de outros países. Certa vez, em uma entrevista nas páginas amarelas da Veja, um cientista disse que não se importava em falar com sotaque porque ele não era espião, pois só os espiões deveriam ter essa preocupação, senão, seriam descobertos pelos inimigos.

Essa é uma boa sugestão de conduta. Não se preocupe com o fato de falar em uma outra língua com sotaque, mesmo porque, por mais perfeita que seja sua pronúncia, as pessoas saberão que você é de outro país. Quanto melhor for sua pronúncia e menos sotaque tiver, mais eficiente será sua comunicação, mas não se pressione pelo fato de estar se expressando em outra língua com algum tipo de sotaque.

Nessa circunstância, o que contará no contato com habitantes de outros países será seu conhecimento, seu preparo e como você considera e respeita os hábitos culturais das pessoas que irão ouvi-lo. Leve em conta também que para alguns povos a maneira característica de falar dos habitantes de determinados países é muito agradável. Quem sabe se as pessoas com as quais você deverá se relacionar não sejam de um país que o vê assim, dessa maneira positiva.

Um conselho final
Mudar a maneira de falar não é uma decisão simples e fácil de ser levada a cabo. Por isso, reflita bem antes de se decidir sobre a melhor forma de agir e leve sempre em conta o seu desejo mais sincero. Não se sinta violentado pela decisão que tomar. Se resolver eliminar o sotaque, analise se está certo de que o sacrifício será compensado pela melhor qualidade de relacionamento e melhoria na eficiência da comunicação. Se, entretanto, julgar que é conveniente continuar falando com sotaque que o identifique como oriundo da sua região natal, meça bem as conseqüências dessa sua atitude e vá em frente. Em qualquer situação faça o que for melhor para você e boa soorrrte!

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