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06 maio 2024

Uma Nova Roupagem

por Reinaldo Polito

Este é o serviço de alto-falante que abrilhanta as festividades da quermesse da igreja Nossa Senhora das Graças. Aqui você ouve as mais belas canções de ontem, de hoje e de sempre. Dando início à programação desta noite vamos ouvir na voz de Ângela Maria, Babalu, que o rapaz de camisa azul oferece à moça de vestido rosa como prova de admiração e muito interesse.
Era assim que iniciávamos os trabalhos no serviço de alto-falante no Interior de São Paulo até meados dos anos 60. Tudo muito simples, primário, ingênuo, bem de acordo com a vida tranqüila e sem sofisticação que se levava. A comunicação perfeita para a época certa. O objetivo era chamar a atenção das pessoas para que comparecessem à quermesse e, ao mesmo tempo, proporcionar alegria e descontração àqueles que praticamente não tinham nenhum outro tipo de lazer. A programação era patrocinada pelos bares e pequenas lojas instalados nas proximidades, e toda a receita revertida para a construção ou reforma da igreja. A voz dos locutores (incluindo a minha) era impostada de maneira artificial e as palavras pronunciadas de forma exagerada. Eu era um garotão, ainda não havia completado 15 anos, e nessa fase de aprendizado, ainda engrossando a voz, várias vezes fui repreendido com severidade pelo Grila, que era o responsável zeloso por tudo o que acontecia naquele rudimentar serviço de comunicação. Ele dizia que se eu continuasse usando o “r” gutural jamais poderia me dedicar à comunicação. Eram conceitos de uma época em que o jeito de falar afetado se constituía num padrão dos locutores, principalmente daqueles que atuavam nos serviços de alto-falante. Mas não se iluda pensando que só tocávamos Babalu. Não, entre um Babalu e outro giravam, com todos os chiados que tinham direito, Quero beijar-te as mãos, com Anísio Silva e Carinhoso, com Orlando Silva, e…dá-lhe Babalu.

Os rapazes costumavam se comunicar com as moças oferecendo músicas e se identificando pela cor da roupa. O “footing” começava por volta das 19h e terminava no máximo às 22h30. Era um tempo em que as pessoas se deitavam cedo porque no dia seguinte precisavam madrugar. Os rapazes enfileiravam-se dos dois lados da calçada, enquanto as moças, como se fosse um cortejo, em duplas ou em trios, de braços dados, passeavam entre eles, fazendo o mesmo trajeto o tempo todo. Nessa caminhada elas “flertavam” com aqueles que lhes despertavam interesse, e como não fazia parte do costume a mulher tomar a iniciativa de conversar com os rapazes, ficavam na torcida para que eles as procurassem. Por isso, os mais tímidos usavam o recurso do alto-falante para revelar suas intenções. Algumas moças que não eram tão bonitas freqüentavam o “footing” todos os finais de semana e voltavam sozinhas para casa. Jovem ainda, eu ficava com dó delas e de vez em quando inventava que alguém que não existia lhes oferecia uma música. Não sei se ajudava ou não, mas a intenção era dar a elas um pouco de alento e de alegria. Pelo menos no dia seguinte teriam como contar alguma vantagem: “ontem à noite me ofereceram música o tempo todo, mas enquanto não aparecer aquele que me interessa mesmo prefiro ficar sozinha”.
Falar em “footing”, serviço de alto-falante e quermesse nos dias de hoje soa como se fossem informações de um outro século – e na verdade eram. A maioria dos leitores, e muito provavelmente você, ainda não havia nascido.

Imagino que você deva estar pensando: “Bem, Polito, muito legal essa história de quermesse e Babalu, mas o que tudo isso tem a ver comigo?”.

O fato em si talvez só sirva mesmo como curiosidade, mas as lições que ele inspira podem nos mostrar caminhos e soluções de extraordinária utilidade.

Um novo estilo se impõe

Vamos voltar um pouco mais no tempo. Lembro-me de como fiquei feliz ao encontrar um texto que caiu como uma luva no meu livro Como falar corretamente e sem inibições para ilustrar o conceito de comparação e oposição. Por acaso, lendo apenas por prazer uma antiga conferência proferida na Sociedade de Cultura Artística por Graça Aranha, em que ele comentava sobre a mocidade heróica de Joaquim Nabuco, me surpreendi com aquele exemplo perfeito. Meu entusiasmo não foi motivado apenas pelo fato de ser uma excelente ilustração da técnica da comparação e oposição, mas, principalmente, por ajudar a esclarecer como a oratória passa por transformações de tempos em tempos. O conferencista foi muito feliz ao comentar como o estilo inovador de Nabuco se distingue da oratória decadente de alguns parlamentares da época. Esforcei-me para tentar suprimir alguns trechos da fala de Graça Aranha e apresentá-la de forma mais sintética, mas quando um discurso é bom e guarda a interdependência entre as diversas partes que o compõe, torna-se difícil retirar qualquer passagem, por mínima que seja, sem o risco de comprometer sua qualidade e seu sentido. Por isso, resolvi transcrevê-lo quase todo e aproveitá-lo para um estudo mais abrangente. Temos assim, neste exemplo, vários ensinamentos – a composição de um texto que emprega em toda sua extensão a interdependência das partes; um ótimo modelo da aplicação da comparação e oposição, que é uma excelente forma de argumento; e uma explicação, que nos interessa mais de perto para nossa análise, de como a comunicação sofre modificações ao longo do tempo:

“…Como a literatura, assim foi a oratória. Oriunda dos seminários, dos colégios de padres, dos liceus, ela ostenta o molde em que se formou, e esse molde foi o da retórica latina. E em uma eloqüência brilhante, clássica e formal de oradores humanistas, padres e parlamentares, seguiu-se o velho ritmo dos grandes modelos da antiguidade romana. O parlamento se tornou uma escola de oradores inspirados no mesmo espírito, seguindo o mesmo processo de que alguns se tornaram mestres e foram modelares. Os discursos elegantes, de fino e apurado dizer, eram compostos como exercícios de escola, e se distinguiram pelo lavor da retórica, pelos exórdios, pelas perorações, e muitos, como nas arcádias, eram celebrados por um arranjo escolástico, ou por uma frase como o sorites. Era um encanto! O parlamento, e sobretudo o velho senado, pela eloqüência desses mestres da palavra, pela medida, pelo esmero do gosto, pela moderação do espírito, pela elegância da expressão, era com mais propriedade aquilo que ainda não foi a academia.”

Observe que com essa análise Graça Aranha ministra uma verdadeira aula do que foi a boa oratória na passagem do século 19 para o século 20. A maneira como o conferencista descreve a qualidade dos oradores dessa época poderia dar a impressão de que esse estilo talvez fosse permanente. Mas, ao comparar essas características oratórias com o perfil de orador apresentado por Joaquim Nabuco, considerado um dos mais brilhantes oradores brasileiros de todos os tempos, constatamos que a cada época prevalece um tipo de comunicação próprio para a sociedade daquele momento.

“Nabuco aí entra quando começava a decadência do gênero. A grande era havia passado. Apenas restavam em muitos poucos as exterioridades da forma acadêmica sem a magnitude do espírito criador. E se por acaso alguns anos antes um tribuno se apresentara na Câmara trazendo o ímpeto, o movimento, a grande voz do povo, era como um bárbaro naquela assembléia de clássicos, a agitava, a adormentava, mas não a seduzia, nem a vencia… Nabuco trouxe para triunfar dos velhos moldes e renovar a eloqüência que definhava o encanto supremo da sensibilidade do seu tempo uma qualidade nova no parlamento, a graça…”

A comunicação exemplar

Mas, afinal, que “graça” era essa apresentada por Nabuco que o diferenciava daqueles que até aquele momento encantavam as platéias? O que o tornava tão envolvente, tão sedutor, a ponto de projetá-lo para a posteridade como um orador incomparável?

Para nossa sorte, e, mais uma vez, para o nosso dilema, temos um texto que mostra exatamente quais foram a qualidades oratórias do grande abolicionista, e que também não pode ser fragmentado, pois, como na conferência de Graça Aranha, todos os detalhes são preciosos na composição da mensagem. No seu livro “Oito anos de parlamento”, Afonso Celso descreve com rara habilidade as características oratórias dos parlamentares com quem conviveu. Um deles é Joaquim Nabuco. A maneira como o autor comenta sobre os dotes oratórios de Nabuco é uma aula excepcional de comunicação, pois se trata de um modelo que, feitas as devidas adaptações para nossa época, pode ser observado como um ideal a ser atingido. Note que Afonso Celso teve o cuidado de descrever aspectos importantes para o aprendizado e o desenvolvimento da comunicação, como a postura, a gesticulação, a expressão facial, o conteúdo, o vocabulário, a escolha da mensagem, a tática do debate, a reputação, a personalidade, o ritmo e a cadência da fala, a voz, a pausa, a dicção a expressividade da fala, o uso das anotações, a introdução, a conquista da atenção e da simpatia, a conclusão, a elegância, a sensibilidade. Enfim, um verdadeiro curso exemplificado na competência de um orador que soube se impor pelo talento e pelo conhecimento. Foi com pesar que “ousei” retirar um pequeno trecho que descrevia sua atuação abolicionista e de como ele havia vencido seu concorrente na disputa a uma cadeira na Câmara. Imaginei que assim eu mesmo não me recriminaria por ter transcrito todo o texto, embora já comece agora a me condenar por tê-lo feito:

“A figura de Nabuco formava por si só o melhor dos exórdios. Bastava assomar à tribuna para empolgar a atenção e a simpatia.

Muito alto, bem-proporcionado, a cabeça e o rosto de uma pureza de linhas escultural, olhos magníficos, expressão a um tempo meiga e viril, nobre conjunto de força e de graça, delicado gigante, Nabuco sobressaia em qualquer turba, tipo de eleição, desses que a natureza parece fabricar para modelo, com cuidado e amor.

A voz estridulava como um clarim; dominava os rumores; cortava, penetrante e poderosa, as interrupções. De ordinário, despedia rajadas, como um látego sonoro. Não enrouquecia, antes, adquiria, com o exercício, vibrações cada vez mais metálicas e rijas. Voz de combate – a do comandante excitando os soldados, no acesso da batalha.

A gesticulação garrida, as atitudes plásticas de Nabuco contribuíam para a grande impressão produzida pelos seus discursos. Consistia um de seus movimentos habituais em meter dois dedos da destra na algibeira do colete. Desses e outros gestos provinha-lhe vantajoso ar de desembaraço e petulância. Articulava sílaba por sílaba os vocábulos, sublinhando os mais significativos.

A tantos e preciosos predicados juntavam-se imensa verbosidade, vivaz imaginação poética, corroborada por aturados estudos literários, fértil em radiantes metáforas, entusiasmo, natural eloqüência, inspiração. Nabuco, demais, sempre escolhia para tema assuntos levantados, problemas sociais, filosóficos e religiosos, de alcance universal. Fugia às polêmicas individuais, às intrigas da politiquice. Não se submetia à disciplina e às conveniências partidárias; desconhecia chefe.

…A imprensa abolicionista vivia a endeusá-lo. Tudo, em suma, cooperava para determinar e encarecer os seus inolvidáveis triunfos oratórios de então. Fascinava; os próprios adversários, que tamanhas superioridades irritavam, reconheciam-lhe e proclamavam-lhe o imenso valor. Acorria gente de todas as condições, numerosas senhoras para vê-lo e ouvi-lo. As galerias o aclamavam.

Mal o presidente proferia a frase regimental: tem a palavra o senhor Joaquim Nabuco, corria um calafrio pela assistência excitada; eletrizava-se a atmosfera. A oração não tinha um curso contínuo e seguido: fazia-se por meio de jatos. Nabuco disparava um pedaço mais ou menos longo, rematado por uma citação justa, uma bela imagem, um mot a la fin. Parava, descansava, consentia que se cruzassem os apartes e os aplausos.

Olímpico, sobrepujando a multidão com a avantajada estatura, manuseava vagarosamente as notas, sorria, os olhos entrefechados, refletia, aguardava a cessação do rumor, desprezava os apartes, ou levantava o que lhe convinha e, de repente, partia para novo arremesso.

Mal descerrava os lábios, restaurava-se o silêncio. Nem era possível detê-lo. Continuasse o ruído, e a portentosa voz, a vertiginosa dicção de Nabuco prestes o abafariam. As perorações, de ingente sopro lírico, eram cuidadosa e habilmente preparadas. Para aí a imagem mais pomposa, a declaração de maior alcance, o gesto mais teatral provocavam estrepitosas ovações nas galerias.

Sentava-se Nabuco, e, durante minutos, ficavam os trabalhos virtualmente suspensos, enquanto não se esvaeciam as ressonâncias de seus possantes e mágicos acentos, repercutidos no que a inteligência e o coração possuem demais elevado e sensível…”

Agora sim conseguimos compreender melhor o que Graça Aranha pretendeu dizer sobre a forma nova e diferente com que Nabuco se apresentava, contrapondo sua maneira graciosa de falar com a do modelo decadente que o precedia.

Entretanto, se Nabuco hoje, com toda sua competência oratória, se apresentasse sem fazer as necessárias adaptações que o levassem ao encontro das características e das expectativas da sociedade atual, provavelmente, fracassaria. Os microfones sensíveis permitem que oradores sem voz forte e portentosa se imponham diante de platéias numerosas. A irreverência, a presença de espírito, a comunicação mais solta e ligeira, o conteúdo quase sempre mais superficial e menos refletido, que sucumbiriam naquele cenário dominado por Nabuco, hoje encontra eco nas platéias acostumadas à superficialidade das mensagens televisivas. Alguns segmentos da população, em determinadas circunstâncias, se envolvem mais pela forma do que pela profundidade do conteúdo. É a rapidez, a velocidade, a valorização cada vez mais acentuada das imagens que determinam o gosto, a preferência, a expectativa e a receptividade das platéias atuais. Não nos cabe neste estudo da comunicação criticar ou censurar o comportamento das sociedades em qualquer época, mas sim analisar e constatar seu perfil para que a arte de falar em público possa se adaptar a cada momento e, a partir dessa compreensão, ser apropriada e eficiente.

Os próprios textos de Graça Aranha e de Afonso Celso que acabamos de analisar, e que podem ser considerados perfeitos na sua composição, se afastam da linguagem mais solta e livre que estamos acostumados a observar nos dias que em vivemos. Algumas de suas expressões caíram em desuso e como freqüentam quase que exclusivamente as páginas dos dicionários são para alguns de nós algo semelhante a uma outra língua.

O moderno e o antigo

Quintiliano escreveu sua admirável obra Instituições oratórias no primeiro século da nossa era. O grande mérito de seu trabalho foi o de reunir em sua obra todo o conhecimento desenvolvido pelos autores até sua época. Passados tantos séculos de quando foi escrito, hoje ler um de seus 12 livros exige concentração redobrada para que a linguagem seja bem compreendida. Por isso, em 1834 Francisco Freire de Carvalho resolveu reescrever o trabalho literário de Quintiliano no livro Lições elementares de eloqüência nacional, possivelmente, numa tentativa de simplificar e facilitar sua leitura. Chega a ser engraçado ler agora essa “moderna” obra de Francisco Freire de Carvalho. Quem não leu Quintiliano e lê essa releitura do século 19 fica imaginando como seria a tentativa de ler e entender aquela produção original.

Voltando ao Babalu

Se observarmos bem, vamos verificar que o que era feito na época das quermesses interioranas ocorre hoje com uma roupagem diferente. As músicas que os rapazes ofereciam às moças identificando-se apenas pela cor da roupa nada mais são que os “modernos” e “revolucionários” torpedos enviados pelos telefones celulares, com ou sem imagem. Os “footings” que as moças faziam todas as semanas, na esperança de encontrar alguém com quem pudessem namorar, nada mais são que os passeios descontraídos que as meninas e meninos fazem pelos corredores dos shoppings, com o mesmo objetivo de encontrar o parceiro ou a parceira com quem possam “ficar”, “dar um rolo”, ou até namorar (essa expressão não precisa de aspas).

Quanto à comunicação, o Grila, provavelmente, me pediria desculpas por ter insistido tanto para que eu mudasse o “r” gutural. Ficaria espantado ao ver que a maioria da população se expressa dessa maneira e que é uma forma de falar perfeitamente aceita por quem vive dentro ou fora dos praticamente extintos serviços de alto-falante.

As músicas, bem, as músicas. Quase caí das pernas quando outro dia, num badaladíssimo programa de televisão, vejo nada mais, nada menos que Ângela Maria interpretando de forma magistral… Babalu. Fiquei ali diante da tela, matando a saudade daquele tempo em que as pessoas viviam com tanta simplicidade, movidas por objetivos tão ingênuos para os dias de hoje. Naqueles poucos minutos em que a grande rainha do rádio cantava aquela canção tão antiga, passou pela minha lembrança as moças de braços dados, sorrindo timidamente ao cruzarem com os olhos dos rapazes, e com o coração disparado na esperança de que eu ou o Grila disséssemos pelo serviço de alto-falante que ele estava oferecendo aquela música para ela, como prova de admiração e muito interesse. Fiquei emocionado, quase chorei. Olhei dos lados para me certificar de que estava sozinho e disse, estalando os dedos – dá-lhe Babalu!

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