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06 maio 2024

Fuja do piloto automático e tenha a platéia nas mãos

por Reinaldo Polito

Se, ao se apresentar diante de um grupo, perceber que durante algum tempo falou enquanto pensava em assuntos diferentes, cuidado – provavelmente você está sendo vítima do piloto automático.

Há alguns anos recebi em minha escola uma visita curiosa e muito estimulante de um dos maiores humoristas da história do País, José Vasconcelos. Passamos o dia juntos, almoçamos, conversamos bastante e ele assistiu a uma de minhas aulas de expressão verbal. Disse-me que sempre tivera a curiosidade de saber como a comunicação, que desenvolvera no aprendizado permanente do fazer, enfrentando, e tendo de motivar ao riso, não só platéias brasileiras como também do Exterior, poderia ser ensinada tecnicamente. Nem preciso dizer que me diverti muito o tempo todo, já que ele é naturalmente engraçado, lúcido e de presença de espírito pronta e sempre alerta.

Entre os diferentes temas que discutimos, o que me marcou de maneira mais acentuada foi como cada um de nós enfrentava o perigo constante do piloto automático. Piloto automático é uma forma vulgar de definir o momento em que aquele que fala em público com freqüência sobre o mesmo tema perde a concentração na mensagem que está desenvolvendo e passa a pensar em outros assuntos. Isto é, a pessoa continua falando ali diante da platéia, mas só de corpo presente, pois seu pensamento rápido e esperto a abandona e se perde na reflexão de outros temas. Embora as minhas atividades profissionais e as de José Vasconcelos tivessem seguido caminhos distintos, apresentam a característica comum de falarmos em público, e o piloto automático é um fenômeno que nos preocupa e nos obriga a ter em todos os momentos a vigília e o autocontrole das ações.

Eu nunca encontrei nas minhas leituras referência de como tratar esse inimigo invisível e traiçoeiro do palestrante. Por isso, essa minha conversa com José Vasconcelos, entre tantos outros motivos, foi tão interessante e até surpreendente, pois sem nunca termos conversado antes, ou termos lido sobre como combater o piloto automático, descobrimos que utilizávamos o mesmo recurso para nos defender e nos proteger dele.

Não confunda piloto automático com automatismo da fala

Antes de falarmos sobre os perigos e as conseqüências do piloto automático e de como proceder para nos livrarmos dele, vamos analisar quais são as diferenças que o distinguem do automatismo da fala.
Talvez o primeiro autor que teve a coragem de abordar o automatismo da fala como recurso de comunicação tenha sido Emile Amet, no seu livro Arte de falar em público, no princípio do século passado. Na sua obra o autor apresenta uma espécie de dicionário de frases usadas com freqüência no cotidiano e sugere que o leitor as pratique intensamente, talvez com o intuito de fazê-las participar do reflexo condicionado.
Assim, ao pronunciar a palavra inicial toda a frase viria automaticamente à tona dando-lhe fluência e correção à fala. Emile Amet ficou tão preocupado em tratar desse assunto que iniciou se desculpando: “O nosso dicionário que nos serviu para a sugestão dos pensamentos deve fornecer-nos, além disso, todos esses lugares-comuns, todas essas precauções oratórias, que é útil conhecer e que formam uma espécie de modelo, sobre o qual se destaca o desenho das idéias.

Vamos dar alguns exemplos, dispondo essas idéias pela ordem do desenvolvimento natural do discurso.
E não se antecipem em acusar-nos de querermos fazer de cada aspirante a orador um papagaio.
Há na linguagem um fundo de expressões muito comuns, muito usuais que é preciso conhecer para revestir o pensamento. Sem dúvida, não abordamos neste momento um lado muito elevado da arte de falar. Mas, cada uma destas artes não tem a sua técnica, o seu lado profissional que é forçoso absolutamente praticar?”
Bem, você deve estar curioso para conhecer pelo menos uma ou outra frase sugerida pelo autor. Vou transcrever duas delas apenas para exemplificar:
“Não quero reacender uma discussão que atingiu o seu termo.”
“A tarefa que me é confiada é tão difícil…”
Li o livro de Emile Amet quando iniciei os estudos da expressão verbal há quase 30 anos, e confesso que considerei suas idéias meio esquisitas – não acreditava que alguém pudesse obter resultados práticos com seus exercícios.

Com o tempo constatei um fenômeno curioso que, de certa maneira, me fez rever os conceitos que tinha sobre esse autor francês. Nos finais dos nossos cursos de expressão verbal fazíamos uma solenidade para a entrega dos certificados de conclusão e convidávamos como paraninfo das turmas uma personalidade com reconhecida competência oratória. Alguns deles, por serem tão excepcionais, depois de dez, doze anos foram convidados novamente, até mais de uma vez. E assim, durante muitos anos esses oradores notáveis encantaram os formandos e seus convidados com discursos admiráveis. Entretanto, eu não poderia deixar que essas verdadeiras obras de arte da oratória, ficassem restritas apenas àquele momento efêmero da solenidade e se perdessem no tempo, por isso, tive o cuidado de gravá-los em vídeo para que mais pessoas pudessem ter acesso a eles em outras oportunidades.

Para minha surpresa e até perplexidade, ao comparar alguns desses discursos verifiquei que vários paraninfos, que como vimos são oradores da melhor qualidade, dez anos mais tarde ao fazerem apresentações aos nossos alunos, em contextos que exigiam mensagens diferentes, repetiram as mesmas frases com as mesmas palavras. Como explicar que oradores que são comprovadamente competentes pudessem se apresentar depois de tantos anos no mesmo ambiente repetindo suas frases? Posso assegurar que não foi por falta de criatividade, muito menos por não saberem o que dizer, mas sim porque falaram tantas vezes sobre o mesmo assunto que as frases passaram a participar do seu reflexo condicionado e proferidas pelo automatismo da fala. As informações estavam tão automatizadas que, ao dizerem as primeiras palavras, não eram apenas essas palavras que vinham à mente, mas sim a frase inteira, completa, como se fossem uma expressão única.

Outro exemplo marcante sobre o automatismo da fala são os eventos em que participo com outros palestrantes. Os que fazem maior sucesso com o público são convidados com freqüência para apresentar seu tema em outras circunstâncias e sempre os encontro falando antes ou depois de mim. É impressionante como as frases desses oradores vão se sucedendo naturalmente com as mesmas palavras num encadeamento automático desde o princípio até o final. A alguns alunos, quando me procuram para criticar esses palestrantes, dizendo que tiveram oportunidade de assisti-los mais de uma vez e que eles falam sempre a mesma coisa, do mesmo jeito, procuro explicar o funcionamento desse automatismo da fala e alerto para o fato de que se observarem apresentações de pessoas que abordam um mesmo tema com freqüência o resultado não será diferente. Além da situação desagradável de as pessoas criticarem a repetição quando assistem à apresentação mais de uma vez, o automatismo da fala pode até trazer benefícios para a comunicação, a não ser que leve o palestrante ao piloto automático.
Observe que os dois fenômenos são diferentes. Enquanto o automatismo da fala permite ao palestrante proferir a frase toda a partir das primeiras palavras, mas consciente das informações que está transmitindo, o piloto automático, ao contrário, desvia sua concentração e o impede de perceber bem o que está dizendo. Embora este seja, normalmente, conseqüência do primeiro, podem ocorrer de maneira isolada, independentemente um do outro.

Agora sim podemos compreender melhor o piloto automático

O piloto automático não é privilégio apenas dos palestrantes, professores ou líderes de reunião. Na verdade, é um fenômeno que pode ocorrer com todos aqueles que desenvolvem atividades repetitivas.
Quantas vezes você não ouviu dizer que determinado jogador de tênis ou de voleibol perdeu uma partida praticamente ganha porque se desconcentrou? Ou que um corredor de automóvel não conseguiu fazer uma ultrapassagem ou permitiu que o ultrapassassem pelo mesmo motivo?
Quando, entretanto, a desconcentração ocorre na comunicação nossa surpresa é ainda maior, porque pelo fato de estarmos falando parece impossível que o pensamento possa ser desviado para outras informações, diferentes da mensagem que estamos transmitindo.

É quase desesperador quando percebemos num sobressalto diante do público que o nosso pensamento havia ficado um bom tempo refletindo sobre assuntos alheios ao tema da exposição. Talvez não seja tanto tempo assim, mas alguns segundos parecerão uma eternidade diante da platéia e os riscos vão desde o simples comprometimento do resultado da apresentação até, em casos extremos, o fim da carreira do palestrante.
Imagine, por exemplo, se nesses instantes em que esteve desconcentrado, com o pensamento distante do local da apresentação, você repetisse informações já transmitidas como se fossem uma grande novidade, ou se o raciocínio fosse interrompido e desse um branco que não o deixasse saber a parte do assunto que estava desenvolvendo. Dependendo da importância do evento a conseqüência de ter entrado nesse piloto automático poderia ser irreversível.

O problema maior do piloto automático, entretanto, não está no fato de repetir uma ou outra informação ou ter um branco indesejável, mas sim de afastar-se da platéia e romper aquela espécie de campo magnético que deveria mantê-lo ligado aos ouvintes. No momento em que você entra no piloto automático os olhos adquirem um brilho característico de quem está distante do público e as pessoas, até sem ter consciência do que está ocorrendo, também se afastam e deixam de se interessar pela mensagem. É uma situação muito curiosa, pois no final até dirão que a apresentação esteve ótima, que seu desempenho foi muito bom, mas você saberá que não teve o público na mão e que, se dependesse do resultado da palestra para conseguir um contrato ou a adesão a uma causa, provavelmente iria fracassar.

Como escapar do piloto automático

Naquele meu encontro com José Vasconcelos eu estava muito curioso para saber se ele, que durante muitos anos fez apresentações diárias nos mais diferentes locais, entrava às vezes no piloto automático e quando sentia que o fenômeno estava para ocorrer como ele agia para se libertar dele. Quase caí das pernas quando ele me revelou que o método que havia desenvolvido para se proteger era o mesmo que eu utilizava há muitos anos – inverter a ordem da apresentação. Como entramos no processo do piloto automático por caminharmos durante a exposição por um rumo conhecido, com o qual já estamos familiarizados, o pensamento fica livre para refletir sobre outras informações na certeza de que os passos serão cumpridos naturalmente. Por isso, o recurso para nos protegermos dele é inverter a ordem da apresentação, isto é, o que seria transmitido mais à frente antecipamos para o momento presente e, ao contrário, o que deveria ser comunicado agora deixamos para dizer posteriormente. Assim, com a ordem invertida os passos deixam de ser conhecidos e nos obrigamos a raciocinar para continuar tendo o domínio da mensagem.

Dependendo das características da apresentação esse método não pode ser aplicado porque há o risco de prejudicar a seqüência lógica da exposição. Nesse caso a alternativa é modificar o momento de contar as histórias ilustrativas. Embora as histórias ilustrativas devam ser usadas para facilitar o entendimento dos ouvintes, algumas, entretanto, são contadas com o objetivo de descontrair a platéia e motivá-la a acompanhar a exposição. Inverter a ordem dessas histórias mais descompromissadas com o conteúdo pode se transformar numa ótima saída para fugir do piloto automático sem atrapalhar a concatenação natural do raciocínio.
Algumas pessoas hesitam em aplicar o recurso de inverter a ordem da apresentação por se sentirem inseguras e com receio de ficarem desestabilizadas com o uso da novidade, por isso não mudam e se defendem argumentando que o antigo roteiro tão conhecido proporciona maior confiança. Se você se sentir nessa situação, prefira ficar um pouco mais inseguro e aplicar o método do que continuar confiante, mas correndo o risco de se desconcentrar e prejudicar ainda mais o resultado da apresentação. É preferível que você elabore esse plano alternativo antes de iniciar a apresentação, mas se diante da platéia, sem ter pensado antes se deveria ou não inverter a ordem da exposição, perceber que está correndo o risco de entrar no piloto automático, faça uma pequena pausa para consultar algumas anotações ou beber um gole de água e aproveite para decidir quais modificações seriam mais apropriadas e aja sem hesitar. Talvez você sinta uma descarga maior de adrenalina, o coração batendo mais forte, as mãos mais frias, mas não se preocupe, é o sinal de que você ficará mais atento e concentrado na sua palestra, e o que é mais importante – o público também.

E se você não quiser ou não puder inverter a ordem?

Você já observou como alguns tenistas dão pulinhos na quadra enquanto aguardam a seqüência das jogadas? Eles agem assim para permanecer concentrados no jogo e não deixar que o pensamento comece a dispersar.
Quer dizer que para não entrar no piloto automático devo passar a dar pulinhos diante da platéia? Lógico que não, mas mudar de posição na frente do público saindo de uma extremidade da sala para outra, ou de um posicionamento mais recuado para se aproximar dos ouvintes pode se constituir num recurso excepcional para evitar o piloto automático. A vantagem desse método é que além de você manter a concentração também ajuda o público a continuar prestando atenção, pois ao se movimentar estará quebrando o foco de atenção dos ouvintes que com o passar do tempo normalmente vai ficando viciado. Assim, as pessoas recuperam a concentração e permanecem interessadas na mensagem. Tome cuidado, entretanto, para não se movimentar de maneira exagerada, pois neste caso o resultado pode ser diferente e prejudicar a concentração das pessoas que talvez estivessem acompanhando sua exposição com interesse.
O uso de recursos audiovisuais também pode ser muito útil para evitar o piloto automático, pois por mais acostumado que você esteja com as imagens sempre será preciso acompanhar com maior cuidado as mudanças das telas e sincronizar a exposição do visual com os comentários que deverá fazer. Se, mesmo com o apoio de visuais, julgar que deverá inverter a ordem da apresentação, faça o planejamento dessas mudanças com antecedência, pois diante do público, por maior que seja sua habilidade em operar os equipamentos de projeção, nem sempre é conveniente promover essas alterações.

Pagando pela concentração

Para encerrar esse texto sobre o automatismo da fala e do piloto automático, que pode desviar a concentração do palestrante, lembrei-me de uma história que ilustra bem a importância de manter a concentração:
Um senhor muito bem vestido estava numa igreja pedindo a Santo Expedito, que vem fazendo muito sucesso com aqueles que desejam resolver causas difíceis, que fizesse com que ele ganhasse um milhão: “Por favor, Santo Expedito, atenda às minhas súplicas e me faça ganhar um milhão, pois eu preciso muito desse dinheiro para comprar um apartamento de cobertura na praia”.
Ao seu lado havia um mendigo, todo maltrapilho, que também suplicava ao mesmo santo: “Por favor, Santo Expedito, eu lhe imploro que me faça ganhar duas moedas para eu comer porque estou com muita fome”.
E ali ficaram por um bom tempo os dois homens fazendo seus pedidos a Santo Expedito, um pedindo um milhão e o outro as duas moedas. Até que chegou um momento em que o homem bem vestido olhou furioso na direção do mendigo, arrancou rápido duas moedas que estavam no seu bolso e bravo, disse entre os dentes: “Tome essas moedas e suma daqui para que o santo possa se concentrar apenas no meu pedido”.

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